A senhora dos peixes
por Licínia Quitério
Era nas tardes de calor que a podiam ver sentada na beira do lago, um chapéu de palha a cobrir-lhe a cabeça, uma perna pendente a baloiçar devagarinho, as mãos sobre o colo, num abandono de sesta. Indiferente a quem passava, atenta aos peixes, nos seus movimentos rápidos, de sentidos imprevisíveis, provocando pequenas turbulências, remoinhos, ondulações, desassossegos na mansidão da água. Um movimento contínuo, silencioso, fresco. Via-os crescer, encorpar nas suas peles esverdeadas, ou douradas, ou negras, ou vermelhas, ou feitas de muitas cores. Ninguém a conhecia. Passaram a chamar-lhe a senhora dos peixes. Nunca lhe ouviram uma palavra. Talvez fosse muda, como os peixes, e se entendessem na comum mudez.
No fim do verão, deixou de aparecer. O lago parecia mais triste sem a senhora dos peixes com o chapéu de palha e a perna baloiçando devagar. Ninguém soube explicar como, no meio do lago, nasceram duas hastes de bambu que cresceram muito segundo a sua condição de elegância e resistência. Uma delas, apenas uma, a meio da tarde, houvesse vento grosso ou aragem fina, bamboleava-se por uns instantes, devagar, para cá, para lá, enquanto os peixes descreviam danças de círculos em redor das torres finas, verdes, silenciosas. Ao crepúsculo, um olhar mais atento podia ver uma sombra projectada na fundura do lago, a fazer lembrar, dizia-se, um pequeno chapéu.
Só os peixes poderiam desvendar os mistérios do lago, mas eles não falam e, se é verdade que não dormem, não têm sonhos, os peixes. Deixam essa tarefa para as senhoras que aparecem e se sentam e balançam uma perna e desaparecem quando crescem novas hastes de bambu.
Licínia Quitério
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